Uma leitura simples no Sermão do Monte nos revelará quem são as pessoas realmente felizes. Para muitos filósofos, a felicidade é inalcançável, pois se trata de algo totalmente contingencial. Alguns são felizes por serem ricos, mas por outro lado, a posse de muitos bens não tem garantido a felicidade de muitos outros. Dentro dessa cosmovisão, a felicidade é algo extremamente relativo. O que tem deixado muitas pessoas felizes tem produzido tristeza em outras. Todavia, não é esse o conceito que encontramos nas bem-aventuranças pregadas por Jesus. Ele parte do princípio de que as pessoas de fato podem ser felizes! E dessa forma que introduz seu sermão (Mt 5) com a palavra felicidade. De fato, a palavra latina beatus, que deu origem ao vocábulo beatitude, traduz a expressão portuguesa bem-aventurados. No Novo Testamento grego, o vocábulo usado por Mateus é makarios, cujo significado é feliz e alegria divina e perfeita. O pano de fundo dessa palavra encontra-se tanto na literatura grega antiga como no hebraico bíblico. Para os gregos, somente os deuses realmente eram felizes, isto é, bem-aventurados. Por outro lado, o hebraico 'esher é traduzido no Salmo 1 com o sentido de quão feliz são! O sentido, portanto, é o de alguém feliz aos olhos de Deus. Observa- se ainda que na literatura grega clássica a palavra era usada para se referir à prosperidade material, mas na literatura sapiencial ela se refere a uma condição de bem-estar espiritual com Deus (SI 1.1; 32.1; 112.1). Jesus em seu sermão da Montanha mantém esse último sentido.
Marty n Lloyd-Jones (1989, p. 28) reconhece que
o grande alvo da humanidade é a felicidade. O mundo inteiro anela obter a felicidade, e quão trágico é observar como as pessoas a estão procurando. A vasta maioria, infelizmente, busca-a de tal modo que essa busca só produz o infortúnio. Qualquer coisa que, mediante a evasão das dificuldades, meramente torne as pessoas felizes por curto prazo, em última análise só tende por intensificar a miséria e os problemas que elas enfrentam. E aí que entra o caráter totalmente enganador do pecado — sempre oferecendo felicidade, mas sempre conduzindo à infelicidade, ao infortúnio e à condenação finais. O sermão do monte, entretanto, diz que se alguém quer ser feliz, aí está o caminho certo. Realmente, somente os bem-aventurados é que são felizes. Essas são as pessoas que realmente deveriam ser congratuladas.[1]
Subindo o monte
Jesus, vendo a multidão, subiu a um monte, e, assentando-se, aproximaram-se dele os seus discípulos; e, abrindo a sua boca, os ensinava, dizendo: Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos céus; bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados; bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra; bem- aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos; bem-aventurados os misericor- diosos, porque eles alcançarão misericórdia; bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus; bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus; bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus; bem-aventurados sois vós quando vos injuriarem, e perseguirem, e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram os profetas que foram antes de vós. (Mt 5.1-12)
Os grandes contrastes: judeus e gentios; Lei e Graça
Para os intérpretes da Bíblia, Mateus escreveu seu Evangelho para os judeus. O propósito era mostrar que Jesus era o Messias ou Ungido pro- metido nas Escrituras do Antigo Testamento. A intenção era, pois, acabar com a tensão existente entre a sinagoga e a igreja.[2] A sinagoga olhava para Moisés, e a igreja, para Cristo. Quem, então, fazia parte da verdadeira comunidade do povo de Deus? Os judeus, que eram os fiéis seguidores de Moisés, ou os cristãos seguidores de Jesus? Para Frank Stagg (1986, p. 90),
Mateus afirma a validade contínua da Lei, tão importante para os fariseus. O que o aparta deles é a sua declaração de que em Cristo se encontra uma melhor compreensão da Lei (5:21-48; 9:13; 12:3,5,7; 15:3-14; 16:6,11), e o seu verdadeiro cumprimento, em contraste com o mau entendimento e uso errado da Lei por parte dos fariseus (9:4; 15:12-14; 22:18; 23;2). Mateus vê Jesus como o cumprimento da Lei, mas descobrindo sua verdadeira intenção, dando a ela obediência plena, expressa por fim no amor, que se dá em serviço sacrificial.[3]
Para Mateus, portanto, esse conflito não era mais necessário, visto que Jesus como o Messias prometido fora o único que realmente pôde cumprir a Lei na sua integralidade, tornando-se assim o legítimo herdeiro de Abraão (Gn 12.7; G1 3.16). Mateus deixa isso claro ao se referir à fundação da igreja por parte de Jesus, o ungido de Deus (Mt 16.18,19). Para Ele, a igreja, que é formada por judeus convertidos e gentios, era a verdadeira comunidade do povo de Deus (Ef 2.14,16). Não havia, pois, necessidade de tensão, visto que não houve ruptura no cumprimento das promessas do Senhor ao seu povo, mas continuidade. Para ser um abençoado e próspero não era preciso voltar a Moisés, mas permanecer em Cristo.
Por outro lado, como já foi observado, Mateus tenciona fazer um contraste entre a Lei e a Graça (Mt 5.21,22). Para Mateus, Jesus não veio para ser um novo Moisés nem tampouco implantar uma nova lei, mas para cumprir a Lei, coisa que fora impossível alguém fazer. Stagg observou oportunamente que Mateus
não apresentou Jesus como um "novo Moisés", que tenha dado uma "nova lei". Ele traçou alguns paralelos entre Moisés e Jesus, quer consciente, quer não; mas nunca apresenta Jesus como "filho de Moisés" [...] "Nova lei" não é palavra que interesse a Mateus. Ele não vê, nem poderia ver, Jesus como outorgador de uma nova lei, pois, para ele, Jesus interpreta e cumpre a Lei. Mateus está interessado com a continuidade, tanto quanto com o cumprimento.[4]
Os intérpretes da Bíblia observam que o fato de Mateus vincular, por exemplo, a genealogia de Jesus Cristo como sendo filho de Abraão (Mt 1.1) tem o propósito claro de mostrar que Ele é esse legítimo herdeiro das promessas (Gn 12.7). Por outro lado, a expressão filho de Davi, tão frequentemente encontrada em Mateus, garante a continuidade das alianças feitas pelo Senhor com o seu povo, e tem agora o seu cumprimento em Cristo e na igreja.
Dentro desse contexto, ser um bem-aventurado é viver da graça, mesmo sabendo que ela não anula a lei (Mt 5.17-20). A graça, como um favor imerecido de Deus, dá agora condições aos filhos de Deus de viverem as exigências da Lei, mesmo tendo consciência de que não estão mais subordinados aos seus rudimentos (G1 4.3; 4.9; Cl 2.8). Cristo cumpriu a Lei, e quem está nEle vive não mais a Lei de Moisés, mas a Lei de Cristo (G1 6.2), isto é, a lei da liberdade (Tg 1.25; 2.12; G1 5.1; 5.13).[5] Na Lei de Moisés, alguém para ser abençoado necessitava fazer alguma coisa; na Graça, os bem- aventurados são aqueles que não necessitam fazer coisa alguma, visto acreditarem que o Filho de Deus já fez por eles. Philip Yancey diz que a graça "significa que não há nada que eu possa fazer para Deus me amar mais, e não há nada que eu possa fazer para Deus me amar menos .
A graça põe Deus, e não nós, como o agente principal das bênçãos. Recebemos porque Ele graciosamente nos dá, e não porque somos merecedores. A filosofia materialista, consumista e secular sempre põe o homem como o centro de tudo. Ela fomenta o egoísmo, o narcisismo e o individualismo. O escritor Charles Swindoll (2000, p. 41,42) traz uma importante reflexão sobre essa filosofia ao comentar o poema de William Ernest Henley intitulado Invicto:
Saído da noite que me cobre,
Negro como o Abismo de polo a polo,
Agradeço aos deuses, sejam eles quais forem, Pela minha alma indomável.
Ao sentir as garras das circunstâncias, Não estremeci nem gritei em voz alta. Sobre os golpes dos imprevistos Minha fronte sangra, mas não se inclina.
Para além deste lugar de rancor e lágrimas Paira apenas o horror das sombras, Todavia, a ameaça dos anos Me encontra e me encontrará destemido.
Não importa quão estreita a porta, Quão cheio de castigos o pergaminho, Sou o senhor do meu destino; Sou o capitão da minha alma.
Swindoll comenta:
Você já ouviu palavras desse tipo, não é? Se você for como eu, deve tê-las ouvido desde criança. Elas parecem tão certas, tão inspiradoras. "Basta se esforçar e você pode fazer tudo sozinho. Pode suportar o que quer que seja. Nada está fora do seu alcance, avance, então... suba mais alto! [...]
[...] O que parece tão certo é, de fato, heresia — aquela que considero a mais perigosa do mundo. O que é? A ênfase no que fazemos para Deus em vez do que Deus faz por nós. Alguns se acham tão convencidos do oposto que argumentariam frontalmente. No geral são aqueles afirmam ser este o seu versículo favorito das Escrituras: "Deus ajuda a quem se ajuda" (que não aparece na Bíblia). Falo de matar a graça! O fato é que Deus ajuda os indefesos, os que não merecem, os que são achados em falta, os que deixam de alcançar o seu padrão. Não obstante, a heresia continua mais manifesta agora do que jamais aconteceu na história. Quase todos se consideram "mestres" do seu destino, "capitães" das suas almas. Essa é uma filosofia antiga gravada profundamente no coração humano. E, por que não? Ela apoia o tema predominante de toda a humanidade: o "eu".[6]
Ética e estética
Uma simples leitura do Evangelho de Mateus revela também o conflito existente entre preceitos e princípios? Teologicamente falando, os preceitos são aquilo que se referem às normas ou mandamentos, enquanto os princípios são aquilo que dão fundamentação a esses mesmos mandamentos ou normas. Os preceitos dizem respeito à lei coercitiva ou impositiva, enquanto os princípios dizem respeito ao espírito dessa lei. Os escribas e fariseus, por exemplo, eram apegados aos preceitos ou normas, e não aos princípios ou ao espírito por trás da lei (Mt 23.23). O resultado disso é que esse apego rígido às leis ou regras do judaísmo, apenas no seu aspecto externo e não interno, criou uma religião voltada apenas para as coisas externas. É justamente por esse fato que a prosperidade no judaísmo contemporâneo de Jesus era vista apenas por seu aspecto externo.
Esses fatos nos permitem concluir que o judaísmo nos dias de Jesus estava mais preocupado com a estética do que com a ética. A ética é a ciência da conduta, e como tal está preocupada com o comportamento humano, enquanto a estética como ciência da arte e do belo fixa-se nas coisas como elas se apresentam aos nossos sentidos. Em outras palavras, a estética tem a ver com a imagem ou aparência, enquanto a ética lida com o caráter. A ética é comportamental, enquanto a estética é sensorial. A ética olha para dentro e a estética para fora.[7] A religião nos dias de Jesus, assim também como hoje, enxerga apenas o lado externo e considera como próspero o homem que é contemplado com muitos bens materiais, e isso independentemente do caráter.
Ao destacar o perigo de alguém viver em função de uma imagem criada, Harry Beckwith (2008, p. 46) escreveu:
Em um comercial bem conhecido, o tenista André Agassi certa vez disse que "A imagem é tudo". No mesmo ano, um possível cliente nos pediu para ajudá-lo a cultivar uma imagem. Nós lhe fizemos uma pergunta sobre posicionamento: "O que torna você único em seu setor?"
"Classe. Eu tenho classe", respondeu ele.
Esse comentário pareceu autoanulador. Uma pessoa "de classe" diria isso?
Ele queria que nós o ajudássemos a construir uma imagem.
Você não pode faze isso.
A pessoa por trás do verniz surge com o tempo, se não imediatamente. Quando surge, os outros não mais a conhecem por sua imagem ou essência. Elas a veem como alguém que tentou enganá-las.
Isso foi tentado várias vezes.
Curiosamente, Agassi percebeu a insensatez de suas palavras. Depois de anos, mudou seu corte de cabelo mullet, deixou de usar roupas que brilhavam à luz negra e casou-se com Steffi Graf, uma mulher cujo estilo e rosto sem maquilagem sugeria desinteresse pela imagem. Ele se dedicou à caridade e à humanidade, subitamente tão aberto ao mundo quanto o alto de sua cabeça, agora careca.[8]
Definitivamente, uma pessoa não pode viver de sua imagem, mas de seu caráter. O caráter é a nossa essência, aquilo que de fato somos. Tem a ver com os nossos valores.
Por muitos séculos a ideia de que há valores que são absolutos no campo ético, conforme defendiam os principais filósofos gregos, dominou o pensamento ocidental. A escola sofista fora praticamente esquecida. Isso somente até a primeira metade do século XX. Foi quando surgiu no cenário filosófico o alemão Friedrich Nietzsch. Nietzsch estava disposto a lutar contra tudo e contra todos para provar que não existiam valores absolutos e eternos. Ele advogava a ideia de que é o homem que valora.
[...] O pensamento nietzschiano acabou tornando-se paradigma para esta geração. Jean Paul-Sartre se tornou o seu maior porta-voz. Através das academias, o que pensou e falou esse filósofo alemão, acabou chegando às ruas. Uma onda de ética relativista parece dominar todos os campos da sociedade.
Na verdade, é difícil para o senso comum entender, no atual contexto, que há de fato valores que são universais. Cada um tem a sua verdade. A sua forma de julgar as coisas. A atenção não é mais voltada para princípios morais validos, mas para uma prática fragmentada e privatizada do tipo "fica na tua que eu fico na minha". Todavia, essa forma de pensar tem trazido mais danos do que bem-estar social.[9]
Letra e espírito
Por outro lado, Mateus tem um motivo a mais para destacar nas bem-aventuranças — os bem-aventurados não estavam debaixo da Lei, mas isso não significava que eles não possuíam lei alguma. Viver debaixo de uma lei rígida, olhando apenas para o seu lado exterior e não para o seu interior, isto é, para o princípio que a rege, é legalismo. Todavia, viver sem lei alguma é antinomismo. O antinomista, do grego anti (contra) e nomos (lei), é justamente a pessoa que se levantou contra todo tipo de norma ou mandamento. Para Mateus, os bem-aventurados não eram nem legalistas nem antinomistas. Por um lado, eles não estavam mais debaixo das normas e leis do judaísmo, mas por outro estavam debaixo da lei de Cristo. Com frequência aqueles que pregam o evangelho da graça caem na tentação de achar que não estão mais sujeitos a norma alguma. Charles Swindoll alertou quanto a isso:
Por causa da graça ficamos livres do pecado, da sua escravidão, da sua sujeição quanto às nossas atitudes, anseios e atos. Mas, tendo sido libertos e estando vivendo agora pela graça, podemos na verdade ir longe demais, colocar de lado todo autocontrole e levar nossa liberdade a tal extremo que passemos a servir novamente o pecado. Mas isso não é absolutamente liberdade, isso é desregramento. Sabendo dessa possibilidade, muitos optam pelo legalismo a fim de não serem tentados a viver irresponsavelmente. Má escolha. Quanto melhor seria ter tal respeito pelo Senhor que voluntariamente nos reprimíssemos ao aplicar autocontrole.[10]
Mais uma vez essas palavras de Swindoll nos fazem ver o aspecto externo e interno da religião. O judaísmo farisaico havia favorecido o lado externo da prosperidade e suprimido o seu lado interno. As atitudes externas, como lavar copos, camas ou andar com vestes que demonstravam um viver piedoso eram práticas encorajadas (Mt 23.25,26). Ser próspero nos dias de Jesus era ser possuidor de muitos bens: "Alma, tens em depósito muitos bens para muitos anos: descansa, come, bebe e folga" (Lc 12.19). É evidente que o ensino de Cristo sobre as bem-aventuranças com sua ênfase nas riquezas espirituais, e não nas riquezas materiais, escandalizou os escribas e fariseus.
Os verdadeiramente felizes
Em seu comentário de Mateus, o judeu convertido ao cristianismo Myer Pearlman descreve as bem-aventuranças como sendo
o estado de vidas em retidão: aqueles humildes, mansos, misericordiosos, puros de coração e pacíficos. Jesus ensina não depender a felicidade por Ele oferecida do que temos ou fazemos, mas do que somos; e não pode ser importada, mas precisa nascer da alma.[11]
Atentemos para as bem-aventuranças:
Pobreza aqui não é vista como escassez de bens materiais, mas como uma carência da alma. A palavra grega ptochos fala de carência material. Todavia, para que seus leitores entendessem que o Senhor não estava aqui se referindo apenas a coisas materiais, Mateus coloca como sendo palavras de Jesus a expressão makarioi oi ptochoi to pneu- mati, isto é, bem-aventurados os pobres de espírito (Mt 5.3).15 Nesse contexto, pobre é quem tem uma carência. Os pobres de espírito, isto é, aqueles que reconhecem suas verdadeiras carências são quem de fato prosperam. O famoso gramático da língua grega A. T. Robertson (2003, p. 27) destaca que:
Lucas tem somente "os pobres", mas mantém o mesmo sentido que se encontra em Mateus. O termo aqui empregado ptochoi é aplicado ao mendigo Lázaro em Lucas 16.20,22 e sugere destituição espiritual (de ptosso, agachar-se, pôr-se de cócoras). O outro termo ptochos é mais frequente no Novo Testamento, e implica uma pobreza mais profunda que penes. "O Reino dos céus" significa aqui o Reino de Deus no coração e na vida. Este é summum bonum e o que mais importa.[12]
2. Bem-aventurados os que choram (Mt 5.4)
O choro pode ser motivado tanto por algo interno como externo. Pode ser originado por um estímulo vindo de dentro como também vindo de fora. O bem-aventurado é aquele que chora tanto pela sua própria situação pessoal como também com a do mundo. Como Isaías, ele sente seus próprios pecados, mas também lamenta os pecados do seu próximo (Is 6.5). "Chorar é ter remorso pelos pecados e arrepender-se por eles, renunciar a eles e abandoná-los. Requer nossa inteira confiança na misericórdia de Deus e total empobrecimento de todos os outros recursos. Sintomas da falta desta beatitude são a petulância e o pecado, a falta de seriedade acerca de suas consequências e a presunção do perdão de Deus — "graça barata", como diz Bonhoeffer. Os que "choram serão consolados". O consolo é o papel principal do Messias na restauração do povo, sua terra e o estabelecimento do Reino, como vimos em Isaías 61. [13]
3. Bem-aventurados os mansos (Mt 5.5)
Marvin Ervin Vicent (1886, p. 37) destaca com muita propriedade que
os significados pré-cristáos da palavra exibem duas características gerais. (1) Eles expressam conduta externa somente. (2) Eles só contemplam relações entre homens. A palavra cristã, pelo contrário, descreve uma qualidade interna, se relacionando principalmente a Deus.
Na literatura grega a palavra praeis (mansos) se refere a alguém que demonstra submissão à vontade de Deus, mesmo quando essa vontade parece contrariar sua vontade pessoal. Não é pieguice, mas submissão consciente à vontade do Senhor. Não é alguém que quando injustiçado questiona a vontade do Senhor ou põe nEle a culpa, mas que se submete à vontade do Senhor. O contexto do Antigo Testamento revela que os mansos eram aqueles que, mesmos injustiçados, confiavam no Senhor como seu legítimo defensor (Is 41.17). Esse ponto de vista será mantido no Novo Testamento (Lc 18.1-8). A prosperidade dos bem- aventurados é medida por esse contentamento. Para O Novo Comentário Bíblico com Recursos Adicionais, "refere-se novamente àqueles que são humildes diante de Deus e herdarão não somente as bem-aventuranças celestiais, mas também terão direito ao Reino de Deus que governará esta terra .
4. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça (Mt 5.6)
Os léxicos traduzem a palavra dikaiosune como estado daquilo que é e como deve ser ou ainda como uma condição aceitável para Deus. Os bem- aventurados, portanto, são aqueles que demonstram um forte desejo pela justiça divina e a buscam com anseio da alma. O bem-aventurado está consciente de que a verdadeira prosperidade só se realiza com a implantação do Reino de Deus, onde a justiça é superabundante. De acordo com o Comentário Bíblico Atos
os judeus acreditavam que o Senhor também satisfaria as necessidades de seu povo no reino futuro (Is 25.6; 41.17; 55.2), assim como suprira as necessidades dos hebreus durante o êxodo, quando pela primeira vez Deus redimira seu povo (Dt6.ll; 8.7-10). Todavia, o maior objeto de sua aliança deveria ser mesmo o Senhor (SI 42.1; 63.1) e a instrução na sua retidão (SI 119.40,47,70,92,97,103; Jr 15-16).
5. Bem-aventurados os misericordiosos (Mt 5.7)
O léxico grego de Strong traduz essa expressão como: boa vontade ao miserável e ao aflito, associada ao desejo de ajudá-lo. No Novo Testamento, esse termo ocorre com frequência no sentido de perdão. Para se perdoar é necessário possuir um coração misericordioso. O verbo eleethesontai, aparece aqui na voz passiva e mantém o sentido de alguém que acha ou encontrou misericórdia. O seu sentido mais intensificado significa aquilo que causa dó e compaixão pela tragédia e refere-se também ao temor de que aquilo que ocorreu com o outro possa ocorrer também conosco.[14] O bem-aventurado tem um coração perdoador.
6. Bem-aventurados os limpos de coração (Mt 5.8)
O katharos, palavra grega traduzida por puro, é alguém limpo ou inocente de culpa. Barclay (1988, p. 122) comenta que
os bem-aventurados são aqueles cujos motivos estão absolutamente livres de mistura, cujas mentes são totalmente sinceras, que são completa e totalmente de um só propósito. Que conclamação ao autoexame temos aqui! Esta é a mais exigente de todas as bem-aventuranças. Quando examinamos com honestidade os nossos motivos, ficaremos humilhados, porque um motivo sem mistura de segundas intenções é a coisa mais rara no mundo. Mas a bem-aventurança é para o homem cujo motivo é límpido como a água pura, e com o único propósito de fazer tudo para Deus. Este é o padrão segundo o qual deveremos nos medir, de acordo com o significado desta bem-aventurança.[15]
Isso nos faz perceber que Jesus Cristo fala do puro, mas não é a pureza meramente ritual ou cerimonial. A pureza aludida aqui vem de dentro, visto se originar do coração.
7. Bem-aventurados os pacificadores (Mt 6.9)
A Peshitta, tradução em aramaico feita em 150 d.C., traduz essa expressão como os que fazem a pazl[16] O pacificador é alguém que não somente ama a paz, mas ele mesmo está envolvido no processo que conduz a ela. A Chave Linguística do Novo Testamento Grego destaca que "o primeiro sentido é que estes são os que efetuam a paz entre Deus e o homem, por meio de Cristo, pela proclamação aos homens da reconciliação do evangelho".[17] Há também referência aqui à paz estabelecida entre homem e homem. O Novo Comentário da Bíblia destaca que aqui "os [versículos] 10 a 12 não deixariam os ouvintes em dúvida quanto à atitude do mundo para o evangelho. O Novo Testamento sempre representa o cristão como alvo de possível perseguição".[18]
8. Bem aventurados os perseguidos por causa da justiça (Mt 5.9)
A. T. Robertson (2003, p. 27) escreve que "apresentar-se como vítima é um artifício mui seguido. O Reino dos céus pertence somente àqueles que são perseguidos por causa da bondade, não aqueles que o são por algum mal cometido".27
Aqui se encontra um conceito sobre prosperidade que se contrapõe àquele existente nos nossos dias. Sofrer injustiça, ser perseguido e até mesmo ser martirizado por causa do Reino de Deus é considerado pelo Senhor como um sinal de bem-aventurança. Dificilmente aqueles que se consideram prósperos dentro da teologia da prosperidade admitem esse conceito.
As bem-aventuranças põem em contraste todos os modelos de prosperidade existentes, quer tenham sido vividos nos dias bíblicos quer sejam vividos hoje. A lição é que alguém próspero não é aquele que é medido por fora, mas alguém que é medido por dentro. Deus quer que seus filhos prosperem, mas que essa prosperidade reflita mais uma atitude interior do que simplesmente o acúmulo de bens terrenos.
[1] LLOYD-JONES, Martyn. Estudos no Sermão do Monte. São Paulo: Editora Fiel, 1989.
[2] João Batista Gomes, em seu livro O Judaísmo de Jesus, argumenta que Mateus deseja mostrar
aos seus primeiros leitores, à sua comunidade, que ela é, por seguir Jesus, o intérprete autorizado da Lei, a forma verdadeira de judaísmo. Pelo contrário, a comunidade dos fariseus era considerada por Mateus como o Israel infiel e inautêntico. Mateus e sua comunidade, portanto, não rompem com o judaísmo, mas estão, sim, em polêmica, conflito ou disputa com os líderes da comunidade sinagogal (GOMES, João Batista. O Judaísmo de Jesus. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 66).
[4] SATAGG, Frank. Comentário Bíblico Broadman. Rio de Janeiro: JUERP.
[5] Veja, por exemplo, os excelentes comentários a esse respeito no Novo Dicionário de Teologia
[6] SWINDOLL, Charles. O Despertar da Graça. São Paulo: Editora Bom Pastor, 2000.
[7] Uma importante diferença sobre a ética fundamentada na personalidade e a ética fundamentada no caráter foi feita por Stephen Covey em seu livro Os Sete Hábitos das Pessoas Altamente Eficazes. São Paulo: Editora Best Seiler.
[8] BECKWITH, Harry & BECKWITH, Christine. Venda-se: A Arte de Construir uma Imagem.
Editora Best Seiler, Rio de janeiro, 2008.
[9] GONCALVES, José. As Ovelhas Também Gemem. Rio de Janeiro: CPAD, 2007.
[10] SWINDOLL, Charles. O Despertar da Graça. São Paulo: Editora Bom Pastor.
[11] PEARLMAN, Myer. Mateus — O Evangelho do Grande Rei. Rio de Janeiro: CPAD, 1995.
[12] ROBERTSON, A. T. Comentário AL Texto Griego Del Nuevo Testamento. Barcelona: Editorial CLIE.
[13] Comentário Bíblico Pentecostal — Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2003.
[14] RIENECKER, Fritz & ROGERS, Cleon. Chave Linguística do Novo Testamento Grego. São Paulo: Edições Vida Nova.
[15] BARCLAY, William. Palavras Chaves do Novo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova.
[16] Peshitta em Spanol— Tradución de los Antigos Manuscritos Arameos. Nashville, TN: Holman Bible Publishers, 2006.
[17] Para Wilfried Haubeck e Heinrich Von Siebenthal, "os discípulos de Jesus, o "príncipe da
paz" [cf. Is 9.5s], difundem a sua paz, entre outras maneiras, levando adiante a sua mensagem de paz com Deus, mas também prevenindo divisões, amargura e discórdia e, sempre que possível, promovendo a paz. (Nova Chave Linguística do Novo Testamento Grego — Mateus a Apocalipse. São Paulo: Editora Targumim/Hagnos, 2010.
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